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domingo, 8 de agosto de 2010

Os desafios para garantir o direito de meninos e meninas se manifestarem perante a Justiça

A necessidade de investigar e julgar crimes sexuais contra crianças e adolescentes implica, inúmeras vezes, no delicado processo de tomada do depoimento das vítimas. Antes de mais nada, é preciso entender que a participação de meninos e meninas nesses procedimentos deve buscar provas confiáveis, mas sempre evitando que os relatos das experiências venham a retraumatizá-los.

Como prevê o Artigo 12 da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, garotos e garotas têm o direito de se manifestar perante a Justiça. A efetivação desse direito, no entanto, demanda certos cuidados. “Temos que entender o estágio de desenvolvimento da criança: o que ela sente, como ela fala, o tempo que ela precisa para se expressar e como vai ser questionada. De outra forma, ela não terá seu direito atendido”, explica o Juiz da 2ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre, José Antônio Daltoé Cezar, que possui diversos trabalhos publicados sobre o assunto.

Além disso, a promoção de condições especiais para a tomada de depoimento é também uma forma de tornar esse momento menos traumático. “Temos certeza do direito da criança falar, mas também é seu direito ser protegida durante a fala. No caso do Brasil, nós reforçamos isso, porque somos signatários de uma Convenção que assegura o depoimento de forma especializada a crianças e adolescentes”, afirma o coordenador de programas da Childhood Brasil, Itamar Batista, um dos coordenadores da produção do livro Depoimento sem medo (?), que oferece um panorama mundial das experiências para a tomada de depoimento em condições especiais


A humanização do depoimento

Não há um padrão para que a tomada de depoimento de meninos e meninas seja feita de forma especial e, com isso, as metodologias variam de país a país e até dentro de um mesmo território. No entanto, as várias iniciativas parecem convergir para a necessidade de oferecer um ambiente mais acolhedor para que as crianças possam falar. “Normalmente crianças abusadas sexualmente estão traumatizadas por sua experiência. Elas estão desconfiadas, ameaçadas pelos abusadores e não acreditam mais nos adultos. Então, tentamos, antes de tudo, criar um ambiente em que ela se sinta segura e confiante”, afirma Tony Butler, psicólogo forense e comandante aposentado da Polícia do Constabulário de Gloucestershire, na Inglaterra.

Dessa forma, é cada vez mais comum que a criança ou adolescente seja ouvida numa sala separada, com o auxílio de um profissional especializado, que faz a mediação entre a vítima e os outros atores envolvidos no processo de investigação ou julgamento do crime. Essas pessoas assistem a conversa por meio de transmissão simultânea ou com o auxílio de falsos espelhos (ver quadro Experiências).

“Na forma tradicional, a criança chegava num ambiente com vários adultos. Mas numa sala especial, com um profissional preparado, ela pode ser acolhida de forma diferente. Além disso, o fato de ela não se encontrar com o réu na sala de audiência é muito tranquilizador”, conta a psicóloga da 1ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre, Betina Tabajaski. De acordo com a especialista, o mediador dessa conversa tem de avaliar se a criança tem condições emocionais para falar, além de deixar claro que aquela conversa é um depoimento, que será usado no processo. “Um profissional capacitado não vai insistir em nenhuma situação. Se a criança não puder falar, ela não fala”, afirma.

Uma das preocupações também é garantir que a fala da criança ou adolescente gere provas confiáveis, sem que ela seja pressionada. Nesse sentido, um dos métodos mais usados para se fazer o depoimento é a entrevista cognitiva, adotada em países como o Brasil, Argentina e Inglaterra. Nela, o entrevistador evita direcionar as respostas da testemunha, que tem um maior controle sobre conversa. “Perguntas múltiplas e fechadas podem induzir a criança. Então, é fundamental fazer questões abertas e deixar o relato mais livre, permitindo que a criança fale de acordo com suas lembranças”, explica a psicóloga.

Número de depoimentos

Outro aspecto que precisa ser considerado é o número de vezes que a vítima precisa depor, pois tocar no assunto quase sempre remete a lembranças e situações traumáticas. Em países como a Inglaterra, onde já está implantado o depoimento especial para crianças e adolescentes, elas precisam falar apenas duas vezes: na Polícia, onde o depoimento é gravado em vídeo, e no julgamento, caso o juiz considere necessário.

Já no Brasil, isso pode variar bastante segundo as práticas adotadas em cada localidade. De maneira geral, a criança vítima de violência tem de relatar o ocorrido no Conselho Tutelar, órgão responsável por receber denúncias de violência sexual; na Delegacia Especializada, para a abertura do inquérito; no Instituto Médico Legal, que faz o laudo médico; e, finalmente, na Justiça da Infância e da Juventude, quando fala para o juiz. A diferença é que, nos estados onde o depoimento especial já foi implementado, sua fala para a Justiça é gravada. Com isso, a criança pode ser dispensada de depor em outros momentos do processo judicial ou até mesmo se um novo julgamento for solicitado, em função de um recurso do réu.

O uso do vídeo

Além de ser importante para reduzir o número de vezes que a criança ou o adolescente terá de falar, a gravação em vídeo também confere, ao depoimento, uma maior credibilidade como evidência judicial. De acordo com o juiz Daltoé Cezar, esse recurso conserva o relato com uma maior riqueza de detalhes do que outras formas de registro. “Mesmo quando se grava o áudio e não se perde nada da fala da pessoa, outras coisas se perdem. Um olhar, um gesto, uma lágrima, tudo aquilo que pode informar o juiz na hora do julgamento está ali no vídeo”, explica o magistrado.

Segundo o ex-policial inglês Tony Butler, com o uso do vídeo é possível, inclusive, verificar se a entrevista foi realizada adequadamente. “Ouvir as perguntas é tão importante quanto ouvir as respostas”, destaca. Entretanto, ele também chama a atenção para o fato de que a qualidade da prova depende da agilidade em se tomar o depoimento. “É do interesse da Justiça assegurar que as crianças possam dar suas evidências o mais rápido possível depois do acontecido, reduzindo assim dificuldades com a memória”, afirma.

Controvérsias

Embora exista um amplo movimento para promover condições mais humanas nos depoimentos de meninos ou meninas, alguns aspectos da discussão não são consensuais. No Brasil, por exemplo, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) se posiciona contra o fato de psicólogos participarem da tomada de depoimento especial. Para a conselheira da instituição, Iolete Ribeiro, isso pode causar uma confusão entre o papel da psicologia e o papel da Justiça no enfrentamento da violência sexual. “Tomar um depoimento não é função do psicólogo. Além disso, a noção de ‘verdade’ na psicologia é diferente da noção na Justiça”, afirma.

O magistrado Daltoé Cezar assegura, contudo, que em nenhum momento o psicólogo participa das sentenças produzidas a partir do depoimento especial. “O psicólogo é um facilitador, usando as técnicas da entrevista cognitiva. Mas quem decide sobre a verdade ou não é o juiz, que sabe o espaço que está ocupando e não transfere essa responsabilidade”, argumenta. Segundo o juiz, os psicólogos e assistentes sociais são, atualmente, os profissionais mais capacitados para lidar com crianças em diversos Fóruns do país. Entretanto, ele não exclui a possibilidade de que pessoas com outras formações possam participar da tomada de depoimento, desde que sejam preparadas para isso. “Na Argentina é psicólogo, na Inglaterra são policiais com a formação em assistência social e, em Cuba, são oficiais de proteção da infância com capacitação específica para fazer essa entrevista”, exemplifica.

Iolete Ribeiro também lembra da necessidade de sempre se respeitar a decisão da criança ou adolescente, que pode optar por depor ou não. Para ela, é fundamental que o debate sobre o depoimento especial não se sobreponha a uma discussão mais ampla sobre a prevenção e o enfrentamento da violência sexual, que deve considerar, em primeiro lugar, o bem estar de meninos e meninas e a recuperação daqueles que foram vítimas de algum crime desse tipo.

Na opinião da oficial de projetos da área de Proteção à Infância do Unicef Brasil, Helena Oliveira, é importante que as discussões sobre o depoimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual avancem sem que os envolvidos com a questão tomem posições polarizadas. “Devemos pensar na possibilidade de inquéritos judiciais em que de fato se faça um trabalho interdisciplinar. É preciso ouvir as experiências e as propostas dos diferentes atores envolvidos na discussão: o psicólogo, o assistente social, a família, o poder judiciário e o executivo”, declara.

Expediente: Supervisão: Daniel Oliveira


Reportagem e Redação: Carlos Jáuregui


Edição: Adriano Guerra e Carolina Silveira


Contato:

artigo34@andi.org.br


Experiências


Brasil

Inicialmente desenvolvida pela Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, a prática do depoimento especial tem se disseminado pelo país. Ele é normalmente realizado por um assistente social e um psicólogo, numa sala especial dentro do próprio Fórum, onde é gravado e simultaneamente transmitido para a sala de audiência.

Argentina

Durante a investigação policial, o depoimento é realizado por um psicólogo especializado, numa Câmara de Gessel – sala projetada para ser observada através de falsos espelhos –, onde também é gravado em vídeo. Caso seja necessário, o depoimento pode ser feito mais uma vez, na fase de julgamento.

Inglaterra

O depoimento é realizado por um policial especializado em um ambiente especialmente preparado. Embora seja gravado na fase da investigação, pode ser necessário que a criança volte a falar na fase judicial, para responder perguntas sobre o primeiro depoimento.

Fonte: Depoimento sem medo (?). Coordenação Benedito Rodrigues e Itamar Batista Gonçalves. São Paulo: Childhood Brasil, 2009.

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